Omissão intencional de uma ideia subentendida. Pode ser traída pela zeugma.


sábado, 28 de junho de 2008

Hall

Subiu ao último andar do edifício e, chegada ao seu destino, o elevador parou após um soluço metálico. Estava fisicamente extenuada e fez essa viagem como a derradeira, depois de uma série de travessias, de deslocações a pé, de apanhar transportes, de subir escadas rolantes, de atravessar praças… Abriu as portas em fole e saiu. Ia visitar um amigo e na sua cabeça ecoava “je suis venu te dire que je m’en vais” do Gainsbourg.
Quando se preparava para mandar uma mensagem a dizer ao seu anfitrião que tinha chegado, reparou na data exibida no ecrã do telemóvel e apercebeu-se que aquele não era o dia em que deveria chegar. “Bolas, chego sempre atrasada a todo o lado, e logo hoje venho um dia antes!” Já era quase noite e, carregada como estava, não lhe apetecia cirandar na cidade desconhecida à procura de um hotel. Estava habituada a viajar ligeira e não compreendia sequer como tinha chegado ali sem ajuda a acartar duas enormes malas, uma mochila pesada e tantos outros sacos. A que propósito trazia tantos volumes? Ela própria não o sabia.
Preparou-se para dormir junto ao elevador. As cores do corredor eram agradáveis à vista naquele lusco-fusco, o amarelo-torrado das paredes rimava com a sua carteira laranja da qual fez uma almofada. Quando finalmente encontrou conforto, passou um morador do prédio que a olhou de soslaio, desconfiado.
Não queria que a tomassem por uma vagabunda pelo que ligou de imediato ao seu amigo a ver se ele tinha alguma ideia onde ela poderia pernoitar. Ele disse-lhe que estava acompanhado e que não podia ficar com ela nessa noite. Contava animado o que tinha programado fazer com ela no dia seguinte, o que ela achou que seria uma forma de ele se esquivar à sua presença...ao preencher o tempo com programas familiares e culturais resultaria em não terem tempo para eles. Na sua conversa telefónica disse-lhe ainda que apesar de não estar em casa, que ela podia dormir lá, que a porta não estava trancada, que os lençóis estavam limpos.
Questionou-se por que razão teria ele deixado a porta aberta e feito a cama de lavado. Seria seguro? Estaria à espera de alguém? E instalou-se em casa dele. Entretanto, ao contrário do que estava à espera, ele chegou enquanto ela arrumava os seus pertences. “Não fizeste a mala, pois não?” Fazer a mala de viagem pressupõe uma selecção criteriosa dos objectos do quotidiano que levamos para uma extensão da nossa vida, implica uma capacidade de prever o que se vai usar em determinadas circunstâncias, conjugar roupas com mapas e climas, casaco para a noite, sapatos confortáveis para caminhar, mala a condizer, presentes para os amigos, livro, música, carregadores de baterias, produtos de higiene pessoal não demasiado grandes… “Não, trouxe tudo", respondeu, "posso cá deixar tudo e levar tudo o que deixei para trás.”
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Estava de chegada e de partida, sempre o mesmo boomerang… Compreendeu então porque se encontrava tão cansada.
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