Omissão intencional de uma ideia subentendida. Pode ser traída pela zeugma.


quarta-feira, 23 de fevereiro de 2011

Escrever para esquecer

O homem tinha uma voz grave e monocórdica e encontrava sempre uma ocasião para contar uma peripécia dos seus tempos de juventude em Palermo, ou dos de estudante de medicina em Florença. Impunha a sua presença da pior forma, esse cirurgião de média estatura, que levantava os calcanhares do chão e que abria o peito como quem quer ganhar uns centímetros. Falava e arqueava os braços tocando com as pontas dos dedos das mãos umas nas outras enquanto falava, com aquela teatralidade do género do bancário a convencer a dona de casa a abrir uma conta ordenado, num tom paternalista e sensato, sempre sempre sempre numa detestável falsa modéstia. Os óculos sem hastes e o cabelo branco do género action man, curto e todo espetado, conferiam-lhe um ar caricato. A seu desfavor, a criatura tinha curtos dentes, como quem morde mas diz que não fere, testa enrugada, como quem se preocupa com as dores do mundo, tom de pele repugnante – uma tez incapaz de se adaptar ao clima, um rosa-porquinho, o tom rosa no rosto das pessoas que estão prestes a perder o controlo do seu corpo, prestes a render-se ao coração, uma ponta reveladora do excesso que, segundo o doutor Mancini era pecado, contrastando com a imagem impoluta que desejava fazer passar. As camisas impecavelmente bem passadas e os vincos bem marcados nas calças casavam com as madeixas da esposa. Essas madeixas que não se moviam, mesmo quando ela sacudia a cabeça para a frente e para trás quando tinha ataques de riso depois do habitual amaretto, finda a refeição.
O estatuto desse homem obrigava o interlocutor a manter a deferência e a atenção, mesmo quando era aborrecedor de morte. Comigo, "il dottore", como era chamado pelos companheiros de viagem, falava da organização da máfia siciliana dos anos 80, do tráfico de influências da maçonaria, das políticas de Mussolini, dos Evangelhos, da formação do Estado Pontifício, e por minha anuência ou falta de resistência a tamanho tédio e conservadorismo, a pouco e pouco, ia invadindo com as suas mãos sapudas o espaço que a boa educação obriga a manter. Os outros, aos seus olhos, eram demasiado incultos, demasiado barulhentos, demasiado católicos, não lhe mereciam tal descontracção, tais desabafos, apesar de a muitos lhes conhecer as entranhas. E ele lá ia alternando as confidências com promessas de ajuda não solicitada, com pedidos das minhas coordenadas.
()
()
()

1 comentário:

serebelo disse...

Há quanto tempo... bom ler-te.
Beijos.

Acerca-te de mim, viajante

A minha foto
P.S.: Os conteúdos da Elipse são da minha autoria (excepto quando referido), e devidamente protegidos por tormentas e bolhas de amor.